O planejamento conjunto de políticas públicas: mobilidade e educação
Érica Miranda dos Santos Requi
A Frente de Projetos Municipais do Infra Women Brasil tem como um de seus objetivos contribuir para o planejamento de políticas públicas das cidades. O primeiro artigo temático desta série de artigos, fruto do trabalho desenvolvido em 2021, tratou das “Cidades inteligentes e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: oportunidades para o próximo mandato municipal”[1].
Um dos conceitos trazidos neste trabalho e que é premissa também para este artigo é que “Uma cidade verdadeiramente inteligente é aquela que faz uso estratégico de infraestrutura e serviços e de informação e comunicação integrado com planejamento e gestão urbana, com foco em gerar alto valor aos cidadãos e dar resposta às demandas sociais e econômicas da sociedade”.
Aliás, a Carta brasileira para cidades inteligentes, traz como um de seus objetivos estratégicos e recomendações a intersetorialidade no planejamento urbano, ponto que talvez possa parecer óbvio para alguns, mas que, infelizmente, na prática, não é. Utilizando o próprio conceito do documento, esta recomendação consiste na construção e consolidação de uma “visão integrada do planejamento municipal com base nos instrumentos de planejamento setorial. Enfatizar as áreas de urbanismo, habitação, saneamento básico (abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas), mobilidade urbana, segurança hídrica, redução de desastres, meio ambiente e tecnologias de informação e comunicação” com o objetivo de “possibilitar que as iniciativas sejam implementadas de forma coordenada no território, usando mecanismos locais de gestão e governança, inclusive de dados e informações”[2].
É imperioso planejar as políticas públicas de forma integrada para que se alcance uma cidade inteligente, que deve ser uma cidade inclusiva. É preciso conectar essas políticas públicas tendo o cidadão e a cidadã no centro deste planejamento. O crescimento de uma cidade, consubstanciado, por exemplo, pela criação de novos loteamentos, e aprovação de novos empreendimentos, deve estar associado com as demais políticas, como saneamento, mobilidade e educação – para que este desenvolvimento seja sustentável. Do contrário, a descoordenação das políticas públicas pode culminar no colapso das cidades, com a criação de problemas de crise de abastecimento de água, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, comprometimento da mobilidade urbana (e também do meio ambiente) pelo excesso de veículos, dificuldade e até impossibilidade de acesso à educação.
No intuito de apresentar esta problemática, traça-se um recorte para trazer como exemplo a relevância do planejamento coordenado das políticas públicas municipais de educação e mobilidade urbana.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelece no art. 4º, inc. X, que “O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado (…) mediante a garantia de vaga na escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar 4 (quatro) anos de idade”.
Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, garante que “A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes (…) acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica” (art. 53, inc. V).
Assim, na teoria, as famílias não deveriam necessitar do transporte público ou de veículos para ter garantido o acesso à educação de suas crianças e adolescentes. Na prática, todavia, a existência de unidades escolares e da oferta de vagas nessas unidades escolares nem sempre é capaz de atender ao comando da LDB e do ECA. Em estudo realizado pelo ITDP Brasil, verificou-se que nos casos em que há a necessidade de utilização do transporte público para o deslocamento para creches e escolas são relatados problemas com a demora, os atrasos e até mesmo a dificuldade de conseguir um assento. Veja:
“Saio às seis horas para elas estarem 7h30 na escola, não é tão longe, mas a dificuldade do ônibus passar naquela ponte ali é terrível, elas vem em pé porque não tem lugar nem para sentar e ainda vem comendo dentro do ônibus, uma na mamadeira e outra até poder chegar.” (Grupo de mulheres de 17 a 35 anos, Recife);
Ele é bebê, eu tenho que ir na encruzilhada, pego um ônibus, muitas vezes demora um pouco para uma pessoa me dar assento. Demora muito o ônibus, eu fico com ele no braço, com bolsa, com sacola, é muito complicado.” (Grupo de mulheres de 17 a 35 anos, municípios da Região Metropolitana do Recife)[3]”.
Além disso, não se pode esconder o sol com a peneira. Quando se fala no acesso à educação infantil – não só, mas principalmente – também se põe à mesa a política de gênero nas cidades. Ainda que não se trate da totalidade das famílias brasileiras, estatisticamente são as mulheres as responsáveis por cuidar das crianças e levá-las à escola. São as mulheres as maiores responsáveis pela realização das atividades reprodutivas[4], conforme conceito trazido pelo Guia prático e interseccional para cidades mais inclusivas, do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID[5].
Um estudo desenvolvido pelo BID apresenta um diagrama que demonstra que a realização das atividades reprodutivas demanda uma “mobilidade muito mais complexa do que a mobilidade produtiva (…) exigindo paradas mais frequentes, viagens mais curtas, com desvios e com cargas físicas (carrinhos de bebê, compras, etc.)” o que “nem sempre pode ser realizada em condições ideais de segurança e conforto, de acordo com o almejado no planejamento urbano”.
Fonte: Guia prático e interseccional para cidades mais inclusivas, do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID (p. 17)
No estudo anterior, do ITDP, constatou-se que, não raro, as mulheres acabam optando por trabalhos mais precários ou/informais para evitar grandes distâncias, grandes tempos de viagem entre casa e trabalho ou os custos financeiros e físicos do transporte público. Isso aliado à inexistência de creches e escolas em período integral provoca uma restrição na possibilidade de muitas mulheres retornarem ou ingressarem no mercado de trabalho. E conclui:
Como recai sobre as mulheres a maior parte dos cuidados com os filhos, os deslocamentos relativos à educação deles impactam de forma significativa a mobilidade das mulheres. Nem todas podem custear a mensalidades das creches privadas ou arcar com os custos financeiros e de tempo que demandam os deslocamentos necessários para levar os filhos às creches distantes do local de moradia ou do trabalho.[6] (grifamos)
O crescimento desenfreado e não planejado das cidades, por vezes, afeta diretamente na possibilidade de construção de unidades escolares (públicas e até mesmo privadas) que sejam capazes de suprir a demanda de determinados bairros no intuito de garantir oferta de vagas que sejam de fato próximas à residência da criança e do adolescente.
Portanto, é preciso pensar o transporte público das cidades em conjunto com a política pública de educação e, também, com a política de gênero. É premente que a política de mobilidade urbana considere os deslocamentos para unidades escolares e tenha em vista tornar viável, principalmente para as mulheres, o retorno ou ingresso no mercado de trabalho.
Assim é que surgem alternativas como a construção de unidades escolares junto aos terminais de transporte público. Ao transformar esta alternativa como uma solução ao invés de duas viagens casa – escola – transporte pode se ter uma única viagem ao terminal de transporte que também será o local da escola. Isso minimiza o tempo de deslocamento, por exemplo. A ampliação de vagas em período integral em locais que facilitem o acesso à cidade, como esses terminais de transporte, também pode favorecer o retorno ou ingresso das mulheres no mercado de trabalho.
No entanto uma ação como essa demanda articulação e planejamento coordenado de das políticas públicas. E este é um grande desafio para o planejamento das cidades e para a viabilização de cidades inteligentes. Por isso, mais do que pensar soluções para as cidades, é preciso pensar soluções integradas que tenham como foco a vida e o desempenho das atividades do cidadão e da cidadã nas cidades. Este é o grande desafio do gestor público.
[1] Disponível em: https://infrawomen.com/2021/03/08/cidades-inteligentes-e-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel/
[2] Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/desenvolvimento-regional/projeto-andus/carta_brasileira_cidades_inteligentes.pdf
[3] ITDP Brasil. “O acesso de mulheres e crianças à cidade”. Julho 2018 – Versão 1.3. Disponível em: http://itdpbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/01/ITDP-Brasil-_-O-Acesso-de-Mulheres-e-Criancas-a-Cidade-V3_JUL-2018.pdf
[4] As atividades reprodutivas são consideradas “trabalho de cuidado”, o “care” em inglês, historicamente delegadas ao público feminino. Esse trabalho corresponde a múltiplas práticas que vão além da função materna, como o trabalho doméstico, trabalho social, assistência médica a crianças, idosos, pessoas doentes ou com deficiência. As teorias feministas se centram em torno do conceito de “cuidado” porque essas são atividades sem as quais não seria possível a manutenção de nossa vida diária. (Guia prático e interseccional para cidades mais inclusivas, do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID)
[5] Disponível em: https://publications.iadb.org/publications/portuguese/document/Genero-e-cidades-Guia-pratico-e-interseccional-para-cidades-mais-inclusivas.pdf
[6] ITDP Brasil. “O acesso de mulheres e crianças à cidade”. Julho 2018 – Versão 1.3. Disponível em: http://itdpbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/01/ITDP-Brasil-_-O-Acesso-de-Mulheres-e-Criancas-a-Cidade-V3_JUL-2018.pdf
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